À margem direita do Sena, em Paris, no ano de 1889, por ocasião da Exposição
Universal, impôs-se uma obra de arte: uma torre de ferro de 300 metros de
altura, ao mesmo tempo pesada e leve, concebida pelo engenheiro Gustave Eiffel
como símbolo de um século fundado em princípios científicos.
Destacam-se na exposição os feitos industriais dos novos impérios coloniais:
Inglaterra e França. Tratava-se da colonização da África e da Ásia, baseada em
relações de poder, muitas vezes indiretas e sutis, que buscava a colaboração
dos colonizados, enredando as elites locais.
A
tensão era parte das relações de manutenção desses impérios, tanto como havia
sido no inicio da era colonial. Todavia, as tensões políticas não se davam
apenas nesse âmbito, mas também no interior da própria Europa. Os países
buscavam se fortalecer por meio de alianças.
O
mundo todo surgia como uma unidade devido às formas de integração do mercado
mundial. As elites dos países dominados se espelhavam nos hábitos dos europeus.
Os hábitos higiênicos e os avanços da medicina chegaram a esses países,
ocasionando o decréscimo da mortalidade, ao mesmo tempo em que a expropriação
das terras comprometia a economia tradicional.
Mas esse mundo não parecia ser mais um mundo harmônico. Era mais fragmentado e
em tensão permanente, confundindo conforto com civilização e fazendo nascer a
barbárie dos tempos modernos.
Do
ponto de vista territorial, encerrou-se o ciclo de conhecimento pioneiro da
superfície terrestre quando Amundsen, em 1911, chegou ao pólo sul, derradeira
porção do nosso planeta ainda não alcançada pelo homem.
A
idéia de uma natureza inviolável da qual o homem fazia parte foi se
esfumaçando. Essa exterioridade traduziu-se na concepção da natureza como
coisa, como objeto manipulável.
Pensar
o mundo como um todo orgânico, como um organismo vivo, buscando-se apreender os
processos espontâneos, cedeu lugar a pensá-lo, mais e mais, como uma estrutura
inorgânica e, fundamentalmente, mecânica, com mecanismos naturais e
artificiais, sendo esses últimos produtos da intervenção humana através de
instrumentos técnicos.
A
crítica aos descaminhos da sociedade industrial e da extrema coisificação da
natureza e das relações sociais foi feita pelo socialismo científico.
O
desenvolvimento de uma corrente de pensamento que buscou elaborar um retorno a
Kant foi denominada de neokantismo. O neokantismo significou a afirmação da
filosofia como reflexão crítica dos valores universais, posição em confronto
aberto com o positivismo do século XIX, que havia menosprezado a filosofia,
considerando-a um saber inútil.
Entre os filósofos neokantistas cabe destacar Wilhelm Windelband por ter
elaborado uma distinção entre as ciências: de outra forma, a questão de ser a
Geografia uma ciência voltada para os estudos gerais ou uma ciência dirigida a
estudos particulares. Observou que um determinado fato pode ser objeto tanto de
investigação nomotética como idiográfica.
As
observações de Windelband se tornaram a problemática central da Geografia.
Seria a Geografia uma ciência nomotética ou idiográfica?
Essa indagação foi objeto de reflexão de Alfred Hettner. Influenciado pelo
neokantismo, procurou recuperar criticamente os estudos sistemáticos de Ratzel,
Humboldt, Ritter, Marthe e Richtofen. Preocupado com a ameaça de dualidade na
Geografia, claramente revelada pela questão posta de Windelband, Hettner
argumentou que a Geografia não era uma ciência nomotética ou idiográfica. Era
tanto uma como outra.
Hettner
considerava que por ser a diferenciação da superfície terrestre o que mais
caracterizava os estudos geográficos, nas mais diversas concepções de
Geografia, considerou ser o estudo dessa diferenciação o ponto central da
Geografia.
Afirmou, assim, o caráter corológico da disciplina geográfica, pois este é que permite
analisar o caráter variável da superfície da Terra. Embora tenha afirmado ser a
Geografia tanto uma ciência nomotética quanto idiográfica, dizia que a essência
mesmo da Geografia se encontrava na sua vertente corológica, ou seja, no estudo
regional.
Em
sua concepção, o estudo das diferenciações da superfície terrestre deveria
conceber essa superfície como uma totalidade. Deveria, ainda, levar em
consideração a totalidade dos aspectos da natureza e do homem num determinado
espaço da superfície terrestre, cujas características possuíssem uma coerência
fisionômica e funcional que permitissem configurar uma individualidade
espacial.
Hettner
chamou a atenção para o fato de que os recortes feitos na realidade são
provenientes do exercício intelectual, não existindo em si mesmo. Mas a
realidade, também, pode ser dividida, levando-se em consideração um conjunto
heterogêneo de fenômenos que possuam uma coerência interna própria, conformando
uma individualidade referida no tempo e no espaço.
Em
Hettner, a interpretação do caráter variável da superfície terrestre se
fundamenta no estudo das relações entre os fenômenos de natureza física e
humana. As particularidades da superfície terrestre, que seriam oriundas da
associação de determinados fenômenos, podem ser reveladas.
Sua perspectiva coloca a questão a respeito de quais fenômenos devem ser
levados em consideração. Para Hettner, a determinação de quais fenômenos devem
ser selecionados decorre da observação e da seleção feitas pelo
pesquisador.
Hettner discordava daqueles que consideravam os continentes, ou mesmo países de
grandes dimensões, como as unidades para um estudo regional. A seu ver, dadas
essas dimensões, as diferenças e diversidades ficariam obscurecidas.
Igualmente, num outro extremo, com uma divisão produzindo dimensões diminutas,
resultaria em uma atomização do estudo. Apesar dessas observações, segundo
Horacio Capel, Hettner não avançava na discussão da escala dos recortes
regionais, um dos principais problemas teóricos e metodológicos da Geografia.
Foi Richard Harthshorne quem desenvolveu o pensamento de Hettner. Nascido nos
Estados Unidos, mas de origem alemã, Richard Harthshorne é um marco da
Geografia americana por ter introduzido naquele país, de uma maneira nova e
meticulosa, o debate teórico-metodológico na Geografia.
Para
Harthshorne, a Geografia é, ao mesmo tempo, uma ciência da natureza e da
sociedade. Afirma que a Geografia deve procurar compreender como os fenômenos
se combinam numa área da superfície terrestre.
Sua
posição é que a Geografia se constitui numa disciplina que procura “descrever e
interpretar o caráter variável da terra, de lugar a lugar, como o mundo do
homem”.
Para Harthshorne, não há fenômenos particulares à Geografia, assim como também
não há um objeto de estudo que lhe seja especifico.
Perseguindo as trilhas de Kant e Hettner, Harthshorne considera que para a
compreensão do presente é necessária a perspectiva histórica, contudo observa
que essa perspectiva não se confunde com a Geografia. O olhar do geógrafo deve
estar dirigido para a apreensão do caráter das áreas, não se confundindo com o
olhar do historiador, interessado nos processos em si.
Harthshorne, desenvolvendo o pensamento de Hettner de que os recortes que são
feitos na realidade são provenientes do exercício intelectual, considera que as
divisões regionais são produzidas pelo intelecto, segundo objetivos
determinados pelo pesquisador. Mas, ao perseguir esses objetivos, adverte que o
pesquisador não deve se limitar à apreensão dos fenômenos mais evidentes da
realidade, pois outros não tão aparentes podem ser fundamentais para análise.
Em
outros termos, na análise regional, o pesquisador deve levar em conta até mesmo
os fenômenos mais obscurecidos. A partir das inter-relações dos fenômenos é que
é produzida a diversidade da superfície terrestre. Harthshorne observa que
integração não significa aglomeração. Determinar os fenômenos mais
significativos deve passar pela formulação de hipóteses, dos quais, entre esses
fenômenos, seriam os mais importantes. E, também, pela revisão constante de
pertinência da escolha.
Na
discussão da análise desses fenômenos, diferentemente de Hettner, Harthshorne
não enfatiza a questão da gênese dos fenômenos e das relações causais entre
eles, centrando-se mais na discussão dos processos e das funções.
Para
Harthshorne, não só é importante a apreensão das combinações diversas dos
fenômenos, quer fortemente integrados ou não, mas também é fundamental perceber
se os fenômenos que ocorrem em um determinado lugar podem, ou não, se
relacionar a outros fenômenos presentes em outros lugares.
Outro
aspecto que Harthshorne destaca na sua discussão diz respeito à delimitação das
divisões entre áreas. Afirma que os marcos divisórios entre aeras decorre das
descontinuidades que são produzidas quando o grau de integração dos fenômenos é
pequeno.
Harthshorne chama a atenção para o fato de que o raciocínio não deve estar
limitado à idéia de contigüidade regional.
Além desse caráter de descontinuidade, Harthshorne observa que, em geral, as
áreas são pensadas mais em termos da sua homogeneidade do que sua
heterogeneidade. Ou seja, segundo características mais uniformes, na maioria
das vezes, a partir de um ou dois aspectos.
Harthshorne
teve seguidores. Seu trabalho foi digno de discussões e controvérsias,
contribuindo para o desenvolvimento teórico da Geografia. Colocamos em destaque
a influência que teve no pensamento de Derwent Whittlesey e as severas criticas
de Fred Schaefer.
Whittlesey procurou desenvolver algumas questões postas por Harthshorne.
Afirmou que a “face da terra, com suas complexas associações de fenômenos,
poderia teoricamente produzir infinita variedade de padrões regionais, cada um
deles demonstrado pela aplicação de critérios diferentes”.
Preocupou-se em classificar as regiões em três grandes grupos: o primeiro
dizendo respeito às regiões que apresentam características simples, denominadas
de regiões simples. O segundo grupo, relativo às regiões que apresentam uma
multiplicidade de características, Whittlesey denominou-as de regiões
múltiplas. O terceiro grupo, referente às regiões totais, diz respeito às
regiões definidas segundo a “associação de características inter-relacionadas,
naturais e sociais, escolhidas dentro de uma totalidade ainda mais complexa”.
Com relação a Schaefer gostaríamos de destacar alguns aspectos da critica que
fez a Harthshorne. Critica que, aliás, Harthshorne respondeu veemente.
Schaefer, alemão de nascimento, com formação acadêmica em ciência política,
filosofia e estatística, migrou para os Estados Unidos por ocasião do nazismo,
e, segundo alguns autores, estabeleceu a ponte entre o positivismo lógico e a
Geografia.
O
principio da critica de Schaefer a Harthshorne situa-se na negativa recuperação
do pensamento kantiano feito por Hettner, que Harthshorne endossa. Fundamentado
no positivismo lógico, Schaefer considera que a Geografia, tal como a História,
é muito diferente das outras ciências. Para Schaefer a perspectiva historicista
havia trazido para a Geografia o excepcionalismo da História. Este ponto de
vista o levou a utilizar o termo excepcionalismo na formulação de suas criticas
a Geografia.
Em
sua opinião, a Geografia deveria romper com os particularismos e se voltar para
a formulação de leis gerais sobre a distribuição de determinadas
características na superfície da Terra. Sua posição era a de que só a Geografia
Geral era cientifica porque fornecia as leis e as teorias para o estudo
regional. Depreende-se, portanto, que ele desconsidera na Geografia idiográfica
e descritiva.
Schaefer criticou o modo com que os geógrafos historicistas pensam a região.
Questionou o fato de que para esses geógrafos a região se conforma segundo uma
combinação particular de fenômenos.
A
preocupação com a formulação de leis gerais na Geografia resultou no
desenvolvimento de um, aporte teórico-metodológico totalmente novo, ocasionando
o desenvolvimento de uma corrente de pensamento geográfico denominada de Nova
Geografia, também conhecida como Geografia Teorética.
A
perspectiva do positivismo lógico entende que os resultados de qualquer
investigação devam ser expressos de forma clara, sendo significativos se
afirmarem a ocorrência de fatos empíricos, devendo, ainda, busca uma linguagem
comum a todas as ciências.
Entre
os princípios do positivismo lógico, cabe destacar preocupação com o
estabelecimento dos enunciados, das normas cientificas e o entendimento de que
a descrição cientifica, a partir de uma análise lógica, deve apreender a
estrutura do objeto.
Segundo Capel, para esta perspectiva, o conhecimento não se confunde com
experiência.
Outro ponto digno de nota é a posição anti-historicista do positivismo lógico.
Isso significa dizer, em primeiro lugar, que toda idéia de processo, de gênese
e de origem não é relevante na análise e, em segundo, que os marcos sociais,
nos quais se desenvolvem os fenômenos, são desconsiderados.
A Geografia, sob essa inspiração, procurou desenvolver a linguagem matemática.
Não que a matemática estivesse ausente, até então, da Geografia. Ela se
colocava desde a gênese do conhecimento geográfico que se desenvolveu junto com
a Astronomia e a Geometria; ou seja, com as preocupações em medir a superfície
da Terra, em cartografar e em fazer projeções. Mas, nesse momento, a matemática
se apresenta como linguagem, significando que tudo o que é geográfico deva
encontrar uma linguagem matemática.
Para isso, o procedimento cientifico deve partir de teorias, formulando
hipóteses e , em seguida, proceder a observação. E é como esse procedimento que
os modelos matemáticos são aplicados e desenvolvidos na Geografia, buscando encontrar
uma ordem no real, uma lógica na organização do espaço.
A
idéia de que há uma ordem subjacente ao espaço possibilita o estabelecimento de
projeções. A possibilidade de estimar projeções e de fazer prognósticos
torna-se, então, factível. Como decorrência, a região se tornou um instrumento
técnico-operacional, a partir do qual se procurou organizar o espaço.
Com o planejamento regional, a face intervencionista do Estado e do capital se
tornaram transparentes.
Os
estudos regionais se preocuparam com a demonstrabilidade das teorias, além do
estabelecimento de previsões, elaborando projeções.
A
tradicional descrição geográfica se revestiu de novo significado. Essa passou a
ser relacionada à classificação entendida como agrupamento de objetos em classe
segundo semelhanças.
Assim, classificar e regionalizar tornam-se, praticamente, sinônimos.
Na
medida em que os geógrafos inspirados no positivismo lógico consideram que os
critérios de divisão regional se encontram num corpo teórico, é, então, a
partir da teoria que se torna possível chegar a uma classificação científica e
à elaboração da descrição.
Imbuídos da idéia de que a matemática era uma linguagem comum a toas as
ciências e de que havia uma unidade nas ciências, que tinha como referencia a
matemática, oi possível transferir teorias de uma ciência à outra e, assim,
geógrafos procuraram incorporar à Geografia teorias alheias a ela.
Nesse contexto, a velha questão do determinismo geográfico ressurgiu reciclada.
Além da aplicação de modelos teóricos e matemáticos, a Geografia incorporou a
teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy. Em particular, os estudos
regionais utilizaram essa teoria tentando resolver varias questões, como a da
delimitação funcional da região, a da definição da escala regional e a da
coesão do conteúdo regional.
As
técnicas estatísticas e matemáticas foram amplamente utilizadas na análise
regional, destacando-se a utilização da análise fatorial e as análises de
correlação.
Os questionamentos teóricos da Geografia passaram, muitas vezes, a se situarem
no nível dos modelos. A discussão passou a ser a dos modelos a dos modelos. Por
assim dizer, os impasses e os problemas advindos dos procedimentos na análise
geográfica e na análise regional eram creditados a imperfeição das técnicas e
dos modelos e analise.
O desenvolvimento da Nova Geografia se deu, sobretudo, nos países de língua
inglesa. Na França, a escola lablachiana continuou seu predomínio até os anos
60 praticamente, tendo sido renovada pelo que ficou conhecido como a Geografia
Ativa. Para a Geografia Ativa, através da ação do homem, por via institucional,
poderia organizar-se o espaço.
Embora a Geografia Ativa se utilizasse muito do vocabulário presente na teoria
geral dos sistemas, tratava-se na verdade, de um modismo ou, como disse Horácio
Capel, “de uma simples modernização da linguagem sem consequências
metodológicas ou teóricas”.
A Geografia Ativa tinha como proposta a organização do espaço. Imbuída de uma
ilusão tecnocrática, considerava que poderia ser possível, por meio de
intervenções a partir do planejamento urbano e regional; ou seja, por meio de
estratégias de organização do espaço, alcançar certo crescimento harmonioso do
espaço.
A análise da sociedade, cada vez mais urbana e metropolitana, traduziu-se na
idéia do espaço como um campo de ação de fluxos. Entendiam que esses fluxos, ao
confluírem para uma determinada cidade, acabavam transformando-a num pólo
regional.
Urbanização, industrialização e centralização tornam-se, assim, as questões de
relevo da Geografia na segunda metade do século XX. Impuseram-se novas
referências na análise regional: fluxos, rede urbana, área de influência de uma
cidade e polarização.
No Brasil, a Geografia, tradicionalmente sob a influência da escola francesa,
incorporou a perspectiva da geografia Ativa e da Nova Geografia. Na
Universidade do Brasil e no IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística -, localizados no Rio de Janeiro, a influência da Nova Geografia
foi bem maior que em São Paulo.
Embora a influência da Nova Geografia tivesse sido bem menor na Universidade de
São Paulo, devido à sua história de vínculos muito estreitos com a Geografia
francesa, não deixa de ser significativo ter sido em 1957, no contexto da influência
da escola americana no pensamento geográfico brasileiro, que, na Universidade
de São Paulo, os cursos de Geografia e História, que compunham um curso único,
acabaram por se cindir em dois.
A Nova Geografia, embora tenha desconsiderado com ardorosa veemência a história
e coisificado as relações em exame, desenvolveu temas novos e bastante
pertinentes à realidade contemporânea; como estudos urbanos e a análise do
espaço industrial, dos fluxos e da circulação.
Acima de tudo, a Nova Geografia se definiu como ciência do espacial. O
interesse pelas particularidades se colocou em último plano, interessando mais
as regularidades espaciais. Cada vez mais começou a se desenvolver e a se
afirmar a idéia de que o espaço é uma construção social e que para se entender
a realidade geográfica tem que se entender a sociedade. Sociedade que parecia,
cada vez mais, encoberta em mistificações e, cada vez mais, fetichizada e
alienante. Sociedade que havia conquistado o mundo e que se lançava, agora,
para fora do planeta.
Fonte: LENCIONE, S. Região e
Geografia. S: EDUSP, 1999, pag. 119 – 145.